Thursday, May 04, 2006

Smart casualty - 1

O sucesso de Juliana deriva, parece-me, da sua imensa auto confiança, notável desde sempre. Dizer que é inesgotável e imensa seria talvez dizer pouco, mas a bem do excelente raciocínio, capacidades sociais e firmeza de carácter e actuação que também possui, não posso enfatizar em demasia essa primeira qualidade. Nasceu com uma improvável consciência de si própria que, cedo, se aliou a uma hiperactividade sadia resultante da diferença de idades considerável para o mais novo do imenso grupo estritamente masculino dos seus irmãos mais velhos. Essa condição acarretou, entre outras inúmeras implicações, e ao contrário do que normalmente se deduz, a sua jovem independência pela força da defesa autónoma de uma saúde psicológica e de uma liberdade de movimentos que os cagões, como ainda carinhosamente os trata, não respeitavam. Aproveitou todo o tempo que tinha à sua disposição em actividades estranhas e estranhamente combinadas ao comum adolescente - da dança contemporânea e ballet à natação ritmíca e canto lírico, passando pelo teatro e voluntariado no lar das Irmãzinhas dos Pobres. Sempre a melhor aluna de todas as turmas dos vários colégios e liceus por onde andou, ao sabor dos apartamentos onde foi vivendo, pessoa inteligente na conversa e no trato, independente e impermeável às lógicas de grupo já na adolescência, invejável e desejável na aparência e forma fisícas, teve, portanto, acesso a todos os enquadramentos e desenvolveu uma capacidade de adequação feroz, em antecipação. Tal como com os apartamentos foi habitando rapazes, e homens, que escolhia - a Juliana sempre soube escolher, para não mais abandonar, e consciente disso impunha-se desafios noutros campos, mais difíceis. Casou-se obviamente com um homem mais novo que ela, um ser entre o inacessível e o intelectual, de acessos de humor imprevisíveis, tímido mas intimamente desenvolto, com mãos grandes e capazes, objector de consciência e destruidor nas palavras que contrapõe. A sua vida, passados os anos de primeiros empregos e estabelecida uma certeza profissional, foi um acumular de sucessos. Encontramo-la hoje com poucos desejos por concretizar, conjugalmente falando nenhum e mesmo a concretização do último idealizado nesse campo, a filha Maria, já foi praticamente autónoma. Profissionalmente seguem-na um rebanho de trabalhadores fãs e submissos, muito pouco desafiantes mas para com quem é justa e fiel. No campo íntimo já as coisas são diferentes - deseja, pela primeira vez, algo que não sabe concretizar, escapar aos anos, manter-se, ao menos manter-se. Este pensamento toma-lhe todos os momentos, por vezes está profundamente consciente disso - normalmente de manhã, em frente ao espelho a ver os estragos de mais uma noite; outras não, apenas sente o interior das coxas e o peso das mamas e do cu sentado na cadeira e a barriga, tudo a descair lentamente, numa degradação lenta, vertical, gravitacional. É seguida por um nutricionista e um omeopata, e recusa a moda do personal trainer porque são uns brutos, nenhum percebe tanto de anatomia como ela em consequência directa de ter sido professora de dança, todos os dias corre pelo menos 8 km e cumpre religiosamente uma sessão de pilates.

O Luís, marido de Juliana, é um ser invulgarmente consciente do rigor das aparências, condição próxima da paranóia que o levou sempre a exercitar a sua dotação natural, que não passa de um nome sonante e 1,87 de altura acompanhados de uma inteligência razoável, num frenesim de actividades associativistas e corporativistas, umas meio a sério outras não. Aí, pela força da sua retórica, ainda é recordado com respeito e, estranhamente ou talvez também não, nunca foi denunciado como o diletante que é. O Luís, que em auto-consciência é superavitário, tem um déficite claro de compreensão dos demais, dos seus motivos e das suas atitudes, angústias e disposições. Todas essas pequenas dimensões do humano são, para ele, estranhas e regra geral de tal forma entediantes que ainda não conseguiu controlar o bocejo insistente que lhe surge invariavelmente nas conversas à volta de tópicos marcadamente pessoais, que lhe soam unicamente a queixume. Por ter consciência dessa limitação emocional, dessa incapacidade de identificação e partilha sentimental, dessa quase involuntária e muito dificilmente controlável vontade de mandar à merda quem se tenta abeirar da sua suposta comiseração, simpatia ou compreensão, retira-se frequentemente do convívio social e mesmo pessoal, esfera habitual e requisito necessário da gente bem sucedida nessas para-politiquices que praticava, e aferroa mais insistentemente no qualquer palanque, cadeira ou caixa de sabão disponível. Reservou-se o direito, ou o dever, de praticar sociedade apenas com aqueles que lhe são naturalmente próximos, por natureza - a família.

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